quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A jornalista Bianca Yasmin

"Em catorze de janeiro de 2010, Olívia recebeu o email de uma jornalista do portal Planeta, que escrevia uma matéria sobre jovens blogueiras. A matéria sairia no dia seguinte, a jornalista tinha uma lista de perguntas e seria muito legal se Olívia pudesse responder naquela mesma tarde.

Olívia estava em casa. Eram férias e ela tinha acordado ao meio-dia. A avó já almoçara e cuidava das plantas no jardim. Olívia tomou seu café-da-manhã na cozinha, pão com requeijão, leite e nescau, depois voltou para o quarto e ligou o computador. Olhou as novidades em seu perfil familiar, onde estavam seus colegas e conhecidos reais, distraiu-se um pouco, e em seguida abriu as contas de email, twitter e facebook de Caroline Cólera. Checou os comentários e mensagens, respondeu rapidamente o que podia ser respondido sem atenção, e finalmente leu o email da jornalista.

"Olá, Caroline
Sou redatora de entretenimento do Planeta e estou entrevistando blogueiras para uma matéria. Minha prima mais nova é fã dos seus vídeos, foi ela quem te indicou. A matéria é sobre as novas blogueiras de moda e estilo, mas eu também quero inserir um box sobre blogs alternativos e feministas. Meu prazo é amanhã, se você se interessar te mando as perguntas ainda hoje. Espero que você queira e possa participar!"

A jornalista se chamava Bianca Yasmin. Olívia pesquisou seu nome mas não havia muita coisa. Viu duas fotos, parecia jovem e delicada. Era redatora do portal, no perfil do linkedin havia três empregos e dois estágios, estava formada havia três anos. Olívia gostou da moça, respondeu que poderia sim participar e logo recebeu outro email com as perguntas:

"Obrigada por aceitar o convite! Assisti alguns de seus vídeos, achei muito legal. Seguem as perguntas. Depois mando o link quando a matéria sair. Um beijo!
- Quando surgiu seu blog? De onde veio a ideia?
- Caroline Cólera é um pseudônimo? Qual seu nome verdadeiro?
- Qual sua idade e profissão (ou atividade principal)?
- Seu blog tem uma linha editorial, ou seja, há um tema central e uma abordagem definida?
- Qual seu objetivo para o blog? O que você sonha conseguir?
- Quais seus hobbies ou atividades favoritas?
- Como você descreveria a si mesma em duas linhas?"

Era sua primeira entrevista. O primeiro contato de uma profissional da mídia, alguém que trabalhava contratada por um portal importante e se interessava por ela. Seu entusiasmo foi mais intenso do que toda satisfação que sentira pelas mensagens de suas seguidoras até aquele dia. Era uma jornalista de verdade. Um portal de verdade. Uma entrevista de verdade. Olívia leu e releu as perguntas, pensou em frases bonitas, sua "linha editorial", seus sonhos e objetivos, seus hobbies e atividades. Foi atingida por uma ventania de ideias e queria dizer muitas coisas. Mas como lidar com a segunda pergunta? Ela já havia pensado algumas vezes, quando seus vídeos ultrapassaram as centenas de visualizações, que a popularidade aumentava a chance de ser identificada por algum conhecido. Por mais maquiada que estivesse, mesmo simulando um tom de voz diferente, um amigo poderia reconhecê-la, se olhasse com atenção. Até aquele momento ela havia adiado qualquer decisão a respeito disso. Ela não tinha vergonha do que publicara, a fantasia de Caroline Cólera era principalmente um efeito estético, a incorporação da atitude e da imagem de uma personagem que ela admirava. Mas as palavras que ela escreveu e gravou eram as suas próprias. O sigilo sobre seu nome tinha a intenção principal de evitar amolações. Agora, se o blog aparecesse no portal Planeta, era provável (e ela desejava) que mais pessoas o descobrissem. A chance de ser reconhecida aumentava. Então não seria melhor simplificar tudo e já assumir seu nome verdadeiro, como a jornalista pediu? Não era melhor ser direta, se afinal ela seria descoberta mais cedo ou mais tarde?

Inês bateu à porta do quarto (ela checava frequentemente se Olívia estava acordada, percebia pelo barulho do teclado). Olívia fechou seus emails antes de responder:

- Oi, vó.

Inês entrou, deu um beijo de bom dia nos cabelos da neta. Era seu beijo habitual nas manhãs das férias, Olívia sentada ao computador desde que acordava.

- Já tomou café?
- Já.
- Vamos no mercado comigo?
- Pode ser daqui a pouco? Tipo uma meia hora?
- Tá ótimo. Te esperando lá embaixo.

Olívia queria responder a jornalista antes de sair com a avó, e precisava decidir rápido. Diria seu nome ou não? Não adiantava ruminar todos as possíveis consequências, era mais honesto escolher uma postura que ela se orgulhasse de defender, em qualquer circunstância. E então ela percebeu que não queria dizer o seu nome, não por vergonha ou medo das consequências, mas porque isso a tornaria novamente uma garota comum - aquela Olívia de dezessete anos, que morava desde criança na Granja Viana com sua avó, e terminara o ensino médio em dezembro, e esperava o início das aulas em fevereiro como qualquer outra garota de classe média da sua idade. Ela era essa Olívia, mas isso era tão insuficiente. Sua vida tinha mais importância como Caroline Cólera."

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Por que Olívia escrevia

"As primeiras experiências de discreto sucesso no youtube deixaram Olívia dividida. Era bom ver o interesse dos outros pelo que ela dizia. Seu humor melhorava imediatamente ao ler os comentários, as estatísticas mostrando que o número de visualizações crescia e os acessos a seu blog aumentavam. Seu tédio cotidiano e a sensação de desimportância desapareciam momentaneamente. Ela ficava alerta e ativa, com a sensação emergente de que sua vida tinha um propósito. Porém havia um descompasso entre os vídeos que faziam mais sucesso e os que Olívia considerava melhores e mais autênticos. Seus três primeiros sucessos foram respostas a alguém, reações inflamadas a conflitos de outras pessoas, não temas originais que ela escolheu a partir de suas motivações mais internas. Foi até mesmo fácil para ela se manifestar sobre o vídeo do chip ou a história de Bruna. Olívia teve tantos tormentos íntimos e familiares em sua própria vida, tinha gastado tanta energia emocional remoendo suas angústias, que opinar sobre as relações alheias era simples. Ela tinha mais orgulho dos textos que foram difíceis de escrever, mas nenhum desses despertou tanto interesse.

Olívia escrevia por muitos impulsos e motivos, alguns deles contraditórios. O começo de sua adolescência foi assombrado por fantasias de abuso, manipulação e vingança. Eram seus fantasmas noturnos, seus cenários eróticos, quando estava sozinha e trancada no quarto antes de dormir. Mas durante o dia, nas aulas e em casa com a avó, ela se comportava conforme as regras, raramente brigava ou se rebelava contra alguém. Suas atitudes mais correntes eram o desânimo e o desprezo; não criava conflito porque preferia ignorar o que detestava, convencer a si mesma de que estava imune a tudo. A situação mudou nas férias entre o primeiro e o segundo colegial, no verão de 2008, quando ela e Vinícius começaram a namorar. Os dois não eram apaixonados e a decisão consciente de se unir, falar a verdade e acolher as indignações um do outro ampliou a compreensão de Olívia sobre muitas coisas. Sua raiva interna se dissolveu um pouco, deixou de ser tão secreta. Quando o namoro acabou, ela tinha outras ideias e outra necessidade de expressão. Seu blog absorveu tudo isso.

O blog canalizava toda inquietação de Olívia sobre o mundo e sobre si mesma. Entre os dezesseis e os dezessete anos Olivia questionava tudo, desconfiava de tudo, queria redefinir do zero o que era viver, encontrar um caminho próprio e verdadeiro para uma existência livre da mentira e da banalidade. Ela achava que poderia fazer isso sozinha, observando e pensando, pois somente pessoas muito atormentadas e francas poderiam compreendê-la, e essas pessoas quase não existiam. Quem a compreendia em seu colégio? Ninguém. Quem a compreendeu verdadeiramente entre todas as pessoas que ela conheceu na vida? Ninguém. Vinícius foi quem talvez chegou mais perto. Agora ela precisava se virar sozinha.

Olívia não queria fazer terapia, embora sua avó perguntasse sobre isso a cada tantos meses. Mas depois de quatro anos de sessões semanais, dos 9 aos 13 anos, essa era a última de suas vontades. Na última vez que Inês tocou no assunto, ela explodiu:

- Pára com isso, vó! Eu não quero! De jeito nenhum. Nunca mais. Nem agora nem daqui a um mês nem daqui a seis meses. Não fica me perguntando porque a resposta vai ser sempre não.

Escrever era difícil, mas transformava seu tumulto interno em algo concreto. As frases, uma depois da outra, se articulavam melhor do que suas ideias, e se um rumo aparecia conforme as palavras se ordenavam, esse rumo ficava gravado e não se perdia nas flutuações de ânimo de seu dia a dia."